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Perdi-te!
Dou mil voltas na cama e acabo por entender que é inútil permanecer deitado. Estou impaciente, inquieto, e com essa sensação de quem não quer pensar e não faz outra coisa que não isso mesmo. Tenho que esperar que o sono me domine ou que os pensamentos desordenados que agora me escravizam se afastem. Não importa! Levanto-me e acendo esse cigarro que reclama misericórdia à insónia. Desgraçado! Não sabe que é estandarte de rendição incondicional ao abraço da noite.

Freud disse que o cigarro é apenas um substituto da masturbação. A dar-lhe razão, já não teria mãos para nenhuma das duas sensações. Mas se os cigarros não me ajudarem experimento ambas.
Rendido à valsa das sombras de um fumo libertador (Freud pode esperar…), pergunto: - quanto destes pensamentos que me inquietam serão efectivamente meus? Sou consequência de mim, ou serei o resultado de pensamentos de mil almas de rostos incógnitos, que em mim habitam com vida própria?
Quero deixar que uma parte de mim me abandone da mesma forma que o fumo se dirige às mais pequenas frestas em busca da liberdade. Por vezes não sei se tenho voz própria ou se os sons que de mim saem são os ecos dos lamentos de um mendigo, vivendo das esmolas de alheia profecia.
Abençoada insónia que na sua clarividência me impele para aniquilar tudo o que me separa de ser profeta do meu futuro. Tenho deixado a decisão de mim para o evoluir do tempo, cobarde adiamento que me transforma numa qualquer coisa, que reza credos a um deus menor vendendo a si próprio a imagem de possuir um lugar no Olimpo.

Abençoada insónia! Ainda sem dar razão a Freud.
Algo em mim existe sem minha permissão, corre no meu sangue sem que nada até agora tenha podido fazer – se é que fiz alguma coisa!
Uma imagem, um pensamento, um sonho, uma memória, um passado, um presente ou a conjugação dos dois numa imagem de futuro? Não sei!
No desnorte invisível da minha alma sempre volto, inconscientemente, a essa terra que foi minha mas que já não tem vestígios dos meus passos. Porque tenho que entrar onde não quero e sempre sair, isso sim, desejando não estar lá?
Porque tenho que perpetuar esse movimento? Como é possível que alguém ou alguma coisa, ausente de mim, invada todos os meus espaços?
Quando parti dessa terra sei que passei a prestar vassalagem à indiferença - É normal! - Se tanto me dói assim a ausência, é porque em cada instante nesse espaço em mim existi e estive vivo. Tanto tempo a plantar um jardim cheio de árvores perfumadas para em determinado momento ter que abandonar a sua frescura e queimar-me debaixo de um sol desconhecido. As árvores levam tempo a dar-nos sombra, e eu sei que nesse momento, perdi a vontade de voltar a ser agricultor dedicado. O tempo mata-me, ou eu mato o tempo, o efeito final será sempre o mesmo. Claro que sei que essa terra há muito que deixou de ter o meu nome inscrito. Não tem os aromas do meu perfume, vestígios da minha pele, pedaços da minha alma, desejos do meu corpo. Não relata mais a minha história nem tem sonhos de mim. Está agora bem distante de tudo o que de mim está perto. Estou longe, está longe, estamos longe, bem sei! Mas continuo a relegar para secundário o importante, e continuo na sua ausência, a determinar os limites da minha essência debaixo da sombra das árvores que lá plantei.

Abençoada insónia! Ainda sem dar razão a Freud.
Sei agora que desejo descansar das reflexões e ser doente temporário vítima do esquecimento. Se a minha face fosse o reflexo do coração, o mundo contemplaria uma estátua de pedra em local incerto. Tenho-me permitido viver na dúvida, prisioneiro do passado com alma fechada, egoísta e solitária. Sou refém de uma lembrança ou uma lembrança é refém de mim. Uma memória com alma própria, e não descubro a forma de controlar as suas asas nem como impedir o seu voo. Essa terra que habitei já não corre no meu sangue, mas os meus passos seguem reféns do intervalo entre o sonho e a memória. E nesse espaço encarcero-me, convertendo-me no meu inimigo mais íntimo.

Penso que tudo me é indiferente, mas engano-me!
Engano-me ao pensar que a humanidade dos meus olhos pode cegar pela dureza de uma aparência que não tenho capacidade de sustentar;
Engano-me na ilusão de pensar que quem não venera nenhuma bandeira poderá algum dia ser pátria de alguém;
Engano-me quando penso que o mundo é meu, mas só o será no dia em que tiver consciência de que nada me falta;
Engano-me quando deixo que a vida aconteça no oriente de uma memória, porque as duas se esfumam da mesma forma;
Engano-me quando penso que posso ser livre comprometendo a minha própria construção;
Engano-me, irremediavelmente, porque com tudo o que sou, trago nos olhos um mundo que a alma não sente.

Abençoada insónia! Ainda sem dar razão a Freud.
Sei agora mais que nunca que quero despir esse fato de pedra que me veste de todas as verdades que minto. Fazer dos meus sonhos a minha única verdade, matar o que em mim já não vive mas que levo, sem saber porquê, colado nos meus passos e preso ao meu tempo. Quero estar nu de mim para me vestir por inteiro. Arrancar-me às raízes que me prendem a uma terra já distante e voltar, ainda que por momentos, a ser pertença de mim como uma flor é da terra que lhe dá vida.

A quem pertenço? Não sei!
Que pátria é a minha? Desconheço!
Mas a mim me quero prender e que, de tão efémera que seja, pareça eterna essa libertação.
Está na hora de calar os barulhos da desordem.
Quero o meu calendário e um dicionário com as minhas rimas.
Despeço-me terra distante, digo-te adeus e cuida das flores que plantei.
Nas memórias das tuas esquinas e ruas percorridas, fui perdendo a noção de quem sou.
Mas não quero ser um “quase” que morre na ideia de um “talvez”
Nem perder o “agora” rendendo-me à ideia do “nunca”.
Nada é tão alto que o sonho não lhe toque.

Tudo termina, até esta insónia. Deixo uma caneta com a tampa toda roída e um cigarro que agoniza entre dezenas de iguais.
Não dei razão a Freud!
Fecho as luzes, vou dormir!

27-07-2010

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